Arrábida “serra-mãe” há 80 anos (2)
A Arrábida representou para Sebastião
da Gama o espaço de eleição e de descoberta, o tempo do encontro consigo e com
o mundo, a motivação para a sentir poético. Data de 6 de Novembro de 1943 uma
carta em que ele confidenciava a Joana Luísa: “No desenrolar da minha Poesia,
cheguei à conclusão de que a missão do Poeta é, não só explicar aos outros a
Grandeza da Criação Divina, mas tentar o aperfeiçoamento do Homem.” Os amigos
que o acompanharam não esqueceram nunca essa busca que animava o jovem
azeitonense — em 24 de Fevereiro de 1962, num texto sobre o amigo, Maria de
Lourdes Belchior escrevia no “Diário de Lisboa” que “a sua vida recôndita, a
que trazia nas entranhas da alma, enriqueceu-se e configurou-se nos contactos
com a Serra-Mãe, nos longos silêncios de vagabundagem pelos caminhos da
Arrábida” e, trinta anos depois, em “Evocação de Sebastião da Gama” (1993),
David Mourão-Ferreira testemunhava que “na memória de alguns de nós, ei-lo
ainda (...) aguardando-nos, à chegada da trôpega camioneta que nos tinha levado
até Vila Nogueira de Azeitão, para logo a seguir nos arrastar a pé, serra
acima, serra abaixo, por veredas de que só ele detinha o segredo, a fim de
melhor nos fazer ver ou rever todos os recantos, todos os encantos da sua
Arrábida.”
Esta ligação do poeta azeitonense à
Serra, de que os amigos foram dando testemunho, exprimiu-a ele em muitas e
variadas ocasiões. Em primeiro lugar, com Joana Luísa, a namorada, a quem
dizia, em carta do início de Agosto de 1944: “A Arrábida ocupa, como sabes, um dos bocados deste meu coração enorme e
bem repartido: dizia eu há dias a um amigo, em carta, que ela é para mim como
que uma mulher; que é para mim uma presença humana; e tenho saudades dela, se
longe, como de uma namorada.” No final do mês, em 29, reafirmava-lhe, em jeito
de declaração de amor, em curta frase, plena de emoção: “Tu e a Serra, as
minhas duas noivas.” E, no final desse ano, em Dezembro, relatava-lhe um
passeio dado na praia do Portinho: “Fui quase até ao fim da praia. E a Serra
era uma coisa que não podia dizer-se. Parecia coberta pela cinza, que o Sol
aloirava, de um veludo azul. Projecção de mim, a Serra, naquela hora calma e
feliz!... E com os olhos nela, cantei a ‘vida’, numa toada que inventei. Eu
hoje, se tivesse um piano, tinha composto mais que qualquer Beethoven. Parece
que só a música seria hoje expressão conveniente de mim.”
A
consolidação desta construção poética em torno da Serra aconteceu sobretudo ao
longo do ano de 1945 — foi em Junho que, em nova carta para a namorada
descreveu o ambiente matinal que vivia na Arrábida: “A manhã está como um
verso. Parece que, sempre que vou sair, a minha Serra — a minha Amante, e minha
Mãe, e minha Irmã, e minha Senhora, se veste do mais bonito, arrulha mais com a
boca do Vento e com a boca do Mar, para me deter ou para começarem ainda nela
as minhas saudades.” E, no mês seguinte, em 23 de Julho, nova carta saía do
Portinho, dirigida a Matilde Rosa Araújo (1921-2010), a contar
o diálogo com a Serra: “Espero, no entanto, que este Luar magnífico (que eu te
não conto por compaixão) me faça bem. Dá-me cabo dos nervos estar para aqui
mudo, quando todas as coisas falam pelos cotovelos aqui na Serra.”
O ano de
1945 traria, contudo, uma contrariedade à vida da Arrábida: em Agosto, um
incêndio castigou o Monte Abraão e parte da serra próximo do Convento. O poeta
azeitonense sentiu a dor com muita violência, como se fica a saber pela carta
que, em 26 de Agosto, dirigiu à amiga Maria de Jesus Barroso (1925-2015): “Estou-te
escrevendo, com a alma cortada... Deves ter sabido do incêndio que anda a
chagar a minha Serra — a minha outra Mãe. Cada queimadura ressente-se em mim.
Se eu tivesse a lágrima pronta a todas as chamadas, ontem teria chorado (...).
Agora tenho os braços arranhados, a roupa cheira a carvão, porque em vez de
chorar peguei numa pá e durante duas horas e meia fui bombeiro. Espero que a
Vida tenha dó da Serra e de mim — e faça rebentar de novo as matas. Mas até
lá, estou como à cabeceira de um doente muito querido.”
O louvor
poético da Arrábida, naquela que foi a primeira obra de Sebastião da Gama,
estava para breve, uma forma de declarar tudo o que com a Serra aprendera, tudo
o que com ela descobrira.
João Reis
Ribeiro
Nota da redacção: O Blogue Synapsis leva ao seu público, nesta edição, a segunda crónica de João Reis Ribeiro publicada no espaço de opinião "500 Palavras" do jornal "O Setubalense", em 3 de Dezembro de 2025 A crónica tem por título "Arrábida 'serra-mãe' há 80 anos (2)". Nas próximas duas edições do blogue Synapsis, acompanharemos a publicação deste importante documento sobre o Poeta da Arrábida.
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Caixa do Correio
Ontem à tarde desci à entrada do meu prédio. Peguei na chave da caixa do correio e abria-a. Um monte de sobrescritos atulhava a caixa. Vasculhei por entre a papelada em busca de missivas da família ou de amigos, trazendo notícias lá da terra, de anúncios de casamentos, do nascimento de um filho, de uma promoção lá no emprego, de lugares distantes onde foram passar férias ou, já que estamos na quadra natalícia, de cartões com votos de boas-festas. Nada! Apenas alguns folhetos de publicidade, promoções do Black Friday, avisos de pagamento do gás, da água, da electricidade, dos telefones, extractos bancários, avisos das finanças... O habitual. Bem sei que é assim há muito tempo. É assim desde que as mensagens por correio electrónico ou SMS, posts whatsapp, instagram e facebook tomaram conta das comunicações e das nossas vidas. Mas se sei que é assim, por que razão ainda revolvo a caixa de correio em busca do que desapareceu para sempre, se esfumou sem deixar rasto? Será apenas um reflexo antigo que teima em fazer com que procure o que já não existe ou a vã esperança de que alguém tenha escapado a esta voragem da modernidade? E um simples postal, feito de cartão, escrito à mão, assinado com a caligrafia de alguém que nos é próximo traga luz e cor ao cinzentismo da minha caixa de correio?
Amanhã, vou comprar uns postais de natal e escrever saudações de
boas-festas, com a minha caligrafia, para enviá-los a alguns dos meus amigos. Vou
mudar o mundo? Não! Vou apenas tentar dar sentido ao meu, àquele em que ainda
acredito.
Salvador Peres
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AGENDA CULTURAL
Francisco Ferreira desmistifica a COP30
Francisco Ferreira, presidente da associação ambientalista ZERO é o orador convidado esta semana do Ponto de Encontro da Agência de Ambiente e Energia de Lisboa, Lisboa E-Nova, que terá lugar na terça-feira, dia 9 de dezembro, às 17h30 no CIUL, Picoas, em Lisboa. Francisco Ferreira participou nos trabalhos da COP30, que se realizou recentemente no Brasil, e irá ajudar-nos a perceber o que significam estes desenvolvimentos para o futuro da ação climática internacional.
JAG
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Exposição 40 Anos de Fotojornalismo
Prémios Gazeta
A exposição 40 Anos de Fotojornalismo – Prémios Gazeta, inaugura na sexta-feira, 12 de Dezembro, às 18:00, na Casa da Imprensa, e propõe uma viagem pelo melhor da fotografia de imprensa portuguesa, reunindo todos os trabalhos vencedores na categoria de Fotografia, desde 1984 até hoje. São 100 fotografias dos 26 fotógrafos distinguidos, que constituem um registo único da evolução do fotojornalismo português, desde 1984 até hoje. Para ver até 13 de Fevereiro, de segunda a sexta, das 10:00 às 18:00, com entrada livre.
JAG
REPORTAGEM
Concerto de Natal em S. Sebastião
O coro de Santo Amaro de Oeiras e a orquestra e coro da Sociedade Filarmónica União Agrícola do Pinhal Novo levaram à Igreja de S. Sebastião um concerto de Natal de elevada qualidade. Os coros brindaram o público, que enchia a Igreja, com um concerto recheado de peças corais de grandes compositores.
A música de Hendel, Rutter, Mendelssohn, John Williams, Saint-Saens, Vivaldi, Mozart e Bach ecoaram na imensa Nave da Igreja, envolvendo o público num ambiente de grande solenidade e beleza, celebrando a proximidade da época natalícia. Os Amigos da Paróquia de S. Sebastião fecharam o ciclo de concertos de 2025 com mais esta feliz iniciativa destinada à angariação de fundos para o restauro do importante espólio de arte sacra da Igreja.
SP
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O jantar musical, e não só, do SYNAPSIS
Violas afinadas, vozes sincronizadas, coro de fazer inveja aos Gulbenkians e Metropolitanos, assim ecoaram cinco canções de Natal no pequeno, mas acolhedor espaço Maria Amaro, na sadina cidade "banhada" pelas Arrábidas. E o coro, entoando White Christmas, Winter Wonder Land, O Holy Night, Have Youself a Merry Little Christmas e Silent Night, funcionou tão afinadinho, porque antes as vozes - qual ensaio elevado aos timbres sopranos, contraltos, quiçá tenores - tinham amarado aos folhadinhos de vitela e caril, ou às mini empadinhas de frango, isto para não falar dos pãezinhos com chouriço com passagem pela tábua de queijos ou paté de alheira.
Ainda assim, as cordas das violas e as cordas vocais não ficaram no ponto... havia ainda que passar pelo sacrifício - profissionalismo oblige - do bacalhau com broa ou do frango assado com castanhas em vinho tinto... onde também não faltou o branco!
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FICHA TÉCNICA
Coordenação Editorial de Salvador Peres e José Alex Gandum
Textos de João Reis Ribeiro, José Alex Gandum e Salvador Peres
Imagens de João Reis Ribeiro, José Alex Gandum e Salvador Peres.
Edição de Salvador Peres












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