As mil e uma palavras de um só dia - Adérito Vilares
O tempo é vigília. Não dorme. Não descansa. Nada o detém no constante
pingar de cada segundo.
Nascemos, vivemos e morremos embalados nos braços do tempo que,
indiferente ao que nos acontece, prossegue inexoravelmente a sua trilha
cadente.
Apesar de nos deslizarmos por entre o seu escorrer infinito não o
conseguimos explicar. Vivenciamo-lo apenas.
Na soma de todas as tentativas de o perceber inventámos conceitos como
o passado, o presente e o futuro e pudemos concluir que o passado e o futuro
não existem porque o primeiro já foi e o segundo será sempre algo para lá do
agora.
Resta-nos o presente que está sempre em movimento e que é um
permanente e movimentadíssimo cruzamento entre o passado e o futuro e que pode
ser entendido como a força motriz da mudança.
James Joyce e Virginia Woolf ofereceram-nos duas obras que tiveram o
condão de nos colocar na confluência dessa tríade de conceitos condensados no
espaço temporal de apenas um dia: “Ulisses” e “Mrs Dolloway”, duas histórias
intrincadas, densas, complexas, de intensa reflexão filosófica.
Acompanhar, em
“Ulisses”, um dia na vida de Leopold Bloom (16 de junho de 1904), em Dublin,
revela-se uma tarefa difícil, quase inextrincável, e que apela a uma grande
dose de paciência e de pundonor. Há uma clara tentativa, por parte do escritor,
em metaforizar o clássico de Homero, a “Odisseia”, o que torna a obra mais
complexa, mas também mais rica do ponto de vista do seu enquadramento.
“Mrs Dolloway” é igualmente uma história de um dia apenas ( um dia de
verão de 1923), passado em Londres, na vida de uma mulher da sociedade,
Clarissa, que dá uma festa, em que o passado , o presente e o futuro se
fundirão numa catarse de reflexões filosóficas e premonitórias, com especial incidência
nas que acabam por debater a problemática de suicídio na personagem de Septimus
Warren Smith, uma espécie de alter ego da escritora, e que se encontra
indelevelmente marcado pelos traumas da guerra. Alguns entendidos presumem que
esta terá sido a antecâmara dos repetidos episódios de intensa depressão que se
abateram sobre Virginia Woolf e que a levaram, anos mais tarde, a pôr termo à
sua vida.
Curiosas em ambas as obras são as reflexões sobre a morte, porque esta
é a consumação da doação do tempo que nos foi oferecido. É a suspensão da sua contagem.
Que continua para além do culminar da existência de cada um.
A dimensão
de temporalidade de “Ulisses” e de “Mrs Dolloway” é extraordinária, porque nos
faz perceber que, no compasso implacável do tempo, o que de melhor podemos
extrair de cada agora, de cada presente, são os seus pequenos átomos, cada
momento ou cada instante, capazes de introduzir qualquer laivo de mudança na
nossa vida. De preferência, os que nos trazem a diáfana sensação de felicidade,
como um sorriso, um beijo, uma canção.
Como nada é eterno, a única forma de nos desligarmos do sincopado
martelar do tempo é abraçar o velho conceito do “Carpe Diem” e aproveitar cada
momento, cada instante, como marcas simbólicas do nosso contentamento.
Adérito Vilares nasceu em Luanda, Angola, em 1959. Estudou direito na Universidade Clássica de Lisboa, de onde saiu em 1982, quando frequentava o 3º ano. Foi bancário até 2014.
Pensador crítico, é autor do livro infantil "O bolo solidário", editado em 2014.
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