Eduardo Lourenço - Partiu o príncipe "da nossa Baviera" - Fátima Ribeiro de Medeiros

 

Dia 1 de dezembro. Pelas 9:20 h da manhã, a pivô do “Bom-Dia Portugal”, RTP 1, anunciava: “notícia de última hora: faleceu Eduardo Lourenço, filósofo e ensaísta. Tinha 97 anos. Não foi indicada a causa da morte.” Cerca de meia hora depois, a mesma estação transmitia a primeira reação, a de Boaventura de Sousa Santos.

A morte de Eduardo Lourenço, o príncipe “da nossa Baviera”, não era nada de que não estivesse à espera, mas sinto uma tristeza, um amargo de boca, uma sensação de algo que se perdeu para sempre e não será substituível, como não pensei que me aconteceria. Recordo a sua lucidez, a sua fina ironia e até um gostinho para a teatralidade que não perdia se a oportunidade lhe passasse em frente. Em 2008, ao pedir-lhe que me assinasse a 2.ª edição de Fernando Pessoa Revisitado (publicada em 1981 e que adquiri em 1988), comentou: «Ah! Tem esta edição… Sabe que eles nunca ma pagaram?” E terminou abrindo o livro e fazendo considerações sobre a obra e os meus sublinhados a lápis.

Figura maior (ia dizer a maior) do meio intelectual português do século XX e do início do século XXI, usou a literatura como interpretação de Portugal e, a partir dela, ajudou-nos a pensar, a reinterpretar e redesenhar “a imagem, ser e destino” deste país, de Garrett, “o primeiro de uma longa e ainda não acabada linhagem de Ulisses intelectual em busca de uma pátria que todos temos”, a Pessoa, passando pela geração de 70, “a mais exemplar e trágica geração intelectual portuguesa”, e a pensá-lo em relação à Europa; apresentou-nos o labirinto e a mitologia da saudade, falou de “Nós como futuro”; pensou e escreveu sobre o espírito da heterodoxia. São muitos os títulos de livros e de artigos que publicou e parece que os papéis que deixou inéditos darão outras tantas publicações.

É um autor a que volto muitas vezes. Além dos títulos citados e de outros que não incluo neste textinho para não o alongar demasiado, apresentam marcas do meu manuseamento Tempo e Poesia (que contém o polémico “«Presença» ou a contra-revolução do modernismo português?”), Poesia e MetafísicaFernando Rei da Nossa Baviera, O Canto do Signo - Existência e LiteraturaAntero ou a Noite Intacta. Aqueles que tiveram aulas de Literatura comigo de uma maneira ou de outra já passaram por ele, já o leram, já o comentaram, já o debateram.

Já devem ter começado a cair nos facebooks e etc. muitos comentários de gente de gabarito, eruditos cheios de saber e conhecimento, com quem aprendemos muita coisa. Claro que não vos escrevo para figurar ao lado deles, mas antes ao vosso, para partilhar convosco a dor que sinto pela partida do Eduardo Lourenço de Faria, o irmão do meu amigo (e meu médico desde os meus 16 anos) António Lourenço de Faria, dois beirões de grande têmpera que, na medida de cada um, foi/é um prazer ler e escutar.

Fátima Ribeiro de Medeiros

Nota: As citações são de O Labirinto da Saudade.

 

Fátima Ribeiro de Medeiros: docente, investigadora literária e mediadora de leitura. Membro do IELT – Instituto de Estudos de Literatura e Tradição, da NOVA FCSH, universidade onde tem realizado todo o seu percurso académico e científico. A sua produção bibliográfica reparte-se por livros, artigos da especialidade em revistas científicas e atas de congressos, abarcando a literatura portuguesa contemporânea, a literatura para a infância, o feminismo do início do século XX e os estudos do livro, da leitura e da livraria.

Alguma bibliografia relevante e/ou relacionada com Setúbal:

– “O legado poético de um homem de Fé”, in Manuel Ventura de Medeiros. Versos Religiosos. Água Retorta: Junta de Freguesia de Água Retorta, 2020 [3.ª ed.].

“Nas cartas é que pode ir alma - Considerações sobre alguma da produção epistolar de Sebastião da Gama”, in AA.VV. Sebastião da Gama - Pelo Sonho é que Vamos, Separata de Letras com Vida, n.º 9. Lisboa: CLEPUL, Universidade de Letras de Lisboa, 2019, pp. 100-117.

– “Referências Literárias em Acontecimentos, Lendas e Tradições da Região Setubalense, de João Carlos de Almeida Carvalho”, in MUSA, n.º 5. Setúbal: AMRS/MAEDS, 2018, pp. 163-187.

– “Sidónio Muralha, andarilho de sonhos e da esperança entre duas pátrias”, in Livro, n.º 4. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2014, pp. 81-93.

“Livrarias e Património”, in AA.VV. Cultura, n.º 23. Lisboa: CHC, NOVA FCSH/Húmus, 2013, pp. 330-335.

“Ana de Castro Osório, uma mulher de causas e convicções”, in AA.VV. Estudos Locais do Distrito de Setúbal. Setúbal: Escola Superior de Educação de Setúbal, 2011, pp. 293-302.

Do Fruto à Raiz, uma Introdução às ‘Histórias Maravilhosas da Tradição Popular Portuguesa’ Recolhidas e Recontadas por Ana de Castro Osório, Gailivro, 2003.

Juntamente com Manuel Medeiros foi fundadora, em Julho de 1973, da livraria Culsete, um marco incontornável da vida cultural de Setúbal.

 






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