O Planeta: o que muda nesta crise - Francisco Ferreira





O Planeta: o que muda nesta crise


Em abril de 1987, a Comissão Mundial para o Ambiente e Desenvolvimento das Nações Unidas, também conhecida por Comissão Brundtland dado que a sua coordenação foi assumida pela então Primeira-ministra da Noruega Gro Harlem Brundtland, publicava um relatório decisivo e inspirador para a humanidade intitulado “O Nosso Futuro Comum” que seria uma das bases para a grande conferência do Rio de Janeiro em 1992 (a ECO/92) onde viria a ser aprovada a denominada Agenda 21. Esta agenda viria a influenciar e a perspetivar de forma decisiva o nosso olhar sobre o que é e como implementar uma sociedade promotora de um desenvolvimento sustentável. Mais tarde, em 2015, Brundtland viria a ter um papel muito ativo na definição e aprovação dos objetivos das Nações Unidas para o desenvolvimento sustentável, a que está associada a Agenda 2030. Brundtland teve um papel decisivo num outro domínio específico que se interliga com as suas preocupações ambientais – formou-se como médica de saúde pública e viria a ser a Diretora-Geral da Organização Mundial de Saúde entre 1998 e 2003.

Nesta altura em que as preocupações de saúde associadas às consequências da pandemia de covid-19 marcam a agenda mundial, ela e os diversos documentos inovadores que coordenou e produziu à escala internacional podem e devem ser uma fonte de inspiração na interligação com o ambiente e desenvolvimento.

Diversas organizações à escala mundial, individual ou coletivamente, têm vindo a alertar para a necessidade de repensarmos a forma como lidamos como interagimos com o planeta. Retomando este espírito de reflexão, a ZERO criou um documento que lança um olhar integrado e de longo prazo sobre a forma como podemos e devemos criar e potenciar uma nova realidade que nos proteja de crises futuras que já se avizinham e que serão inevitáveis, focando-nos no bem-estar das pessoas e no estabelecimento de uma relação de equilíbrio e respeito pelos limites do planeta. Chamámos-lhe, inspirados por Brundtland, “O Nosso NOVO Futuro Comum”. Divulgámo-lo no 50º aniversário do Dia da Terra, 22 de abril, e está disponível na página internet da associação.

Temos efetivamente pela frente um vasto conjunto de oportunidades. A aposta numa economia de base mais local e nacional pode ajudar em momentos de crise como o presente, onde o acesso aos recursos necessários pode ser facilitado (por exemplo, as empresas que conseguem produzir em Portugal o material necessário para a área da saúde; o abastecimento agrícola de base local ou regional; a economia circular, com a possibilidade de reparação, da reutilização como promotores de emprego local e regional). Devemos refletir sobre o que é realmente essencial no sentido de reduzir os níveis de consumo e aumentar a eficiência no uso dos recursos no futuro. O tecido empresarial deve desenvolver uma capacidade de adaptação a novas realidades emergentes e reforço das sinergias universidades/empresas no sentido de serem encontradas soluções criativas para problemas do país. É fundamental também potenciarmos a criação de emprego a nível local e regional aproveitando as oportunidades decorrentes da aposta em áreas como a promoção de uma economia circular (reutilização, reciclagem de resíduos), da aposta na reabilitação das cidades e vilas no sentido de melhorar as condições de vida das famílias mais vulneráveis (aproveitamento de energias renováveis, eficiência energética, conforto térmico), numa agricultura de múltiplos outputs de base local e regional assente em circuitos curtos de distribuição.

Como referido anteriormente, devemos preparar a sociedade e a economia para outras crises fundamentais como é a climática e a ambiental. Esta experiência atual permite compreender as graves consequências que podem resultar da impreparação para enfrentar os riscos que se colocam à sociedade e à economia. Não agir sair-nos-á muito mais caro do que agir atempadamente assegurando uma transição justa. Aplicar estes ensinamentos à gestão de outras crises que temos em mãos será muito benéfico para a sociedade.

Muitas empresas, entidades, trabalhadores estão a descobrir o potencial das reuniões virtuais e do teletrabalho, o que poderá vir a ter reflexos positivos no futuro, em termos de ganhos de produtividade (melhor gestão do tempo), de impacto ambiental (menos emissões associadas à mobilidade, otimização da gestão dos transportes públicos, menor utilização do transporte individual) e financeiros (menores custos de transporte) que daí podem advir.

Nesta pandemia podemos constatar as desvantagens de uma sociedade globalizada no modelo atual, que fragiliza a capacidade de resposta dos países dada a enorme dependência de países terceiros para abastecimento, mas que abre a porta a um melhor entendimento das vantagens de apostar de forma decisiva numa economia circular de base mais local e regional. Temos agora uma noção mais clara da nossa interconexão e da interdependência local, regional, nacional, europeia e mundial que existe para resolvermos os problemas que iremos enfrentar. É preciso rentabilizar o maior sentimento de comunidade e interajuda, onde muitas pessoas se oferecem como voluntários ou começam a contactar com vizinhos com quem antes nunca tinham comunicado ou sobre os quais pouco sabiam. Há assim uma perspetiva reforçada de que todos temos importância na sociedade e todos podemos contribuir para a resolução dos problemas.

Só precisamos que o poder político e cada um de nós e a sociedade como um todo possa neste “intervalo forçado” descobrir fontes de inspiração para agir.

Francisco Ferreira, professor universitário, Presidente da ZERO

(artigo publicado no Magazine Synapsis Primavera 2020)


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