A verdade da mentira - Elisabete Caramelo




A verdade da mentira

Como numa grande família, há verdades que se revelam e muitas mentiras que se escondem por estes dias do século em que anda tudo ligado. O cérebro dispersa-se entre a netflix, o watsapp, o facebook, o instagram, a box, o qualquer coisa play e, para os mais retardatários, o computador ou a televisão. Uma coisa é certa: o animal humano é lento se o compararmos com o afã tecnológico. Lento e impreparado, incapaz de se se habituar a esta coisa multitasking, com demasiadas tarefas para cumprir em simultâneo.

Se juntarmos o excesso tecnológico à era do vazio (como lhe chamou Gilles Lipovetsky), temos o pano de fundo completo para este tempo que nos habituou ao fácil, ao “dois por um”, ao já digerido, à múltipla oferta, ao “depois leio que agora não tenho tempo”, ao stress do ócio e a tudo o que é de usar e deitar fora. Assim fomos evoluindo num tempo a correr, sem deixarmos de correr mais depressa que ele, como bem escreveu Manuela de Freitas no fado cantado por Camané “Corre a gente decidida/Pra ter a vida que quer/Sem repararmos que a vida/Passa por nós a correr”.

A rapidez é a filha dileta desta era da simultaneidade e da partilha, onde as nossas vidas são livros abertos e o conceito de privacidade é algo vulgarmente associado ao romantismo do século XIX, a qualquer coisa de antigo, surpreendente e na ordem do misterioso. Num simples clique espreitamos a vida dos amigos nas redes sociais, estamos a par das mortes e dos nascimentos, das férias e das festas de aniversário. Os desastres num país a três mil quilómetros de distância são-nos próximos e já pouco nos surpreende porque tudo pode ser visto num tablet ou num telemóvel, sempre perto de nós.

Neste mundo em direto e em simultâneo, aprofundamos pouco e reagimos muito. A interrogação de outros tempos é agora mais uma afirmação que nos faz reagir sem procurar saber, sem buscar fontes de informação fidedignas. Estamos numa espécie de era da ignorância alimentada pela velocidade e pela dispersão da informação, pela insegurança e pela falta de confiança, em que o chamado quarto poder (os meios de comunicação social) foi apanhado desprevenido e ultrapassado rapidamente, confirmando a lógica do tempo.
Nestes últimos anos, o jornalismo tem vindo a enfrentar uma das mais graves crises de sempre - refém de audiências e entretenimento, sem nenhuma autonomia financeira. Muitas empresas de media navegam à vista, usando as táticas de sobrevivência habituais: mão-de-obra barata, diminuição do número de funcionários, abertura a financiadores estrangeiros, pouco claros nos seus propósitos. Esta é apenas uma parte da realidade porque não podemos ignorar os números que apontam para a queda a pique na tiragem dos jornais ou a grande transformação na forma como os cidadãos procuram informação.  Ainda sobrevivem bons faróis no meio do nevoeiro, mas os prognósticos não são os melhores e nos EUA já se fala de substituir os jornalistas por profissionais digitais.

De uma forma muito breve, este foi/é o cenário propício para o aparecimento das chamadas “fake news” que entraram nas redes sociais com grande impacto. O público, habituado a “espreitar” informação nas redes e sem se interrogar sobre a sua origem, é facilmente enganado nesta voragem de informações. Lê, acredita sem verificar e indigna-se, partilhando a mesma informação. Em determinadas situações são os próprios jornalistas a caírem na armadilha da informação falsa. E o que está por trás destas “fake news”? Um excelente negócio de empresas sediadas fora do país que vão inventando mentiras sobre Portugal (no caso português e em todos os outros), denegrindo a imagem de políticos, empresários, professores, etc... Recentemente, o jornalista do Diário de Notícias, Paulo Pena, publicou várias reportagens sobre estas empresas que não têm um rosto ou alguém que fale por elas. Em quase todos os casos há muito dinheiro envolvido e uma clara intenção de lucro com as falsas notícias: quanto mais “likes” e seguidores, mais ganham. Quanto maior for a sua influência, maior é o seu volume de negócios. Tratam-se de empresas escuras com negócios pouco claros. Longe vão os tempos dos boatos e dos mexericos de café, como poderiam pensar os mais ingénuos. 

A tentar evitar que a situação se torne incontrolável, há exemplos como o do Wall Street Journal que criou uma equipa multidisciplinar para detetar conteúdos falsos; outros exemplos internacionais se seguirão. Enquanto os europeus discutem as “fake news”, os norte-americanos começam agora a preocupar-se com as “deepfakes” que permitem integrar imagens de uma pessoa com as declarações de outra, sem que a audiência perceba. A verdade é que a mentira se propaga cada vez mais depressa.


Elisabete Caramelo, membro do Synapsis

(artigo publicado no Magazine Synapsis Outono 2018)

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