Carta encontrada numa garrafa em Tróia - Ângela Fonte-Nova
Carta encontrada por um pescador acidental, nas
margens da praia da Caldeira, em Troia. A carta, acondicionada numa garrafa, rezava
assim:
Estuário do
Sado, 22 de Junho de 2003
Meu querido Leandro,
Espero que te encontres feliz e bem de saúde na data em que esta carta, hoje lançada ao rio, chegar ao teu conhecimento. Se é que algum dia a vais receber, o que considero pouco provável, embora deposite muita esperança na sábia constância do vaivém das marés.
Acuso a
recepção das muitas cartas que não me enviaste, essa outra face visível do muro
de silêncio que ergueste entre nós, desde aquele dia em que o nosso amor, num
repente, se desfez em pó.
Não, não tenho
estranhado esse teu absoluto silêncio. Sabia que seria assim. Essa estranha e
persistente ausência que tão de repente cresceu em ti, meu querido Leandro, foi
um duro golpe que ainda hoje, passados dez anos, me custa a suportar. Tu, que
eras tão apaixonado, tão carinhoso, atento e presente, nesse tempo já tão
longínquo, quando o mais puro amor tomava conta dos nossos corações.
É verdade que
eu também nunca te escrevi. Por isso podes também ser mordaz e irónico e
dizeres que acusas o recebimento da correspondência que nunca te enviei e que
também sou parte do muro que nos separa. Sim, é verdade, podes dizê-lo. Mas há
uma grande diferença entre nós: contrariamente a ti, eu nunca te esqueci.
O mundo rodou
largos milhares de vezes desde o dia em que nos separámos e eu continuo sem
saber como viver com esse teu absurdo silêncio.
Por isso, meu
amor, decidi remeter-te esta carta dentro de uma garrafa e lançá-la ao rio, para
que ela siga ao sabor das marés, avançando e retrocedendo, como a vida, numa
dança que a levará ao destino que lhe estiver destinado, e esperar que, um dia,
ela chegue até ti.
Ângela Fonte-Nova é natural de Angra do Heroísmo, Ilha Terceira, Açores. Licenciada em Filosofia, é Professora Agregada na Delaware University, em Newark, Delaware, EUA. Seguidora das ideias do filósofo Agostinho da Silva e grande divulgadora da literatura portuguesa, sobretudo da poesia de Jorge de Sena, Sophia de Mello Breyner Andresen e Fernando Pessoa, Ângela Fonte-Nova prepara o lançamento, em Portugal, do seu primeiro livro de poemas, sob o título “Em Circuito Fechado”.
Que texto e que mensagem fantástica. Gostei muito de ler.
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