A minha memória de João Cutileiro - Francisco Borba
‘’Passei a minha vida toda, penosa e lentamente, escalando até ao cume do Evereste. Agora velho, "quebrada a espada já, rota a armadura", olho para trás por cima do ombro e vejo que me enganei: em baixo estão as Penhas da Saúde.’’ João Cutileiro
O meu convívio com o João Cutileiro foi fugaz e interpolado, ao longo dos anos. Conheci-o, em sua casa, numa tarde luminosa de Maio de 1996. Há muito que admirava a sua obra, dispersa em exposições e lugares vários do nosso país, e tinha decidido procurá-lo, para lhe adquirir uma peça que queria oferecer à Ana, que completava 50 anos em Junho desse ano. Consegui o telefone, já não me lembro bem como, e liguei-lhe. Conversa curta, cordial pôs-me duas alternativas: ‘’em Lisboa, onde tenho umas peças, ou, se quiser, aqui em casa, em Évora, onde trabalho. Conhece Évora?’’. Optei pela segunda hipótese, movido pela curiosidade natural de conhecer o verdadeiro santuário das suas produções. O João vivia numa casa tradicional, num espaço que tinha sido uma antiga quinta dos arredores da cidade, fora das muralhas, mas que naquele tempo se podia considerar já no centro, ‘’engolida’’ pelo crescimento urbano. O acesso era facultado através um grande portão. Lá chegado, puxei pela corrente da sineira que surgia através do gradeamento. O ladrar de um cão e, passados uns instantes, o som de passos vindo do pátio, deram conta que a minha chegada tinha sido conhecida. E o portão abriu-se.
Do outro lado estava um homem, dos seus 60 anos, cabelo branco,
barba branca cortada curta, óculos redondos de aro metálico, e que vestia uma t-shirt
branca, onde pendurava, com um par de suspensórios pretos, umas calças largas,
que caiam sobre umas botas empoeiradas de pó de pedra. Um sorriso bondoso e
simpático. Feitas as apresentações, caminhámos até a entrada da casa. Para lá
chegar, uns curtos trinta metros, atravessava-se um grande pátio onde jaziam,
de forma desordenada, inúmeros blocos de pedra de vários tamanhos. No meio, uma
portada de ferro, onde pendiam duas grossas correntes ligadas a um cadernal. Ao
fundo, via-se um grande armazém que se adivinhava ser a oficina.
Entrámos! Entrar em casa do João Cutileiro, era mergulhar na Arte
no mais genuíno sentido do termo. Logo no ‘’hall’’ diversas obras (esculturas)
surgiam do chão e muitas outras preenchiam as paredes. Ao fundo, uma porta
larga dava acesso a uma divisão com uma ampla janela virada a sul que iluminava
todo o espaço, repleto de pequenas obras, algumas em cima de uma mesa, e
outras, peças recortadas no mármore e desenhos, penduradas nas paredes. Do lado
direito, em sentido contrário, uma escada dava acesso ao andar superior, e, aí,
as paredes por lá acima estavam cobertas e desenhos e fotografias. Expliquei ao
que vinha e o João lá me foi elucidando: ‘’Olhe, esta é original e exemplar
único. Esta também é original, mas dela fiz n cópias’’.
Predominavam as paisagens alentejanas, construídas com mármore recortado
de várias cores, e figuras femininas, muitas, carregadas de erotismo. Mas depressa
a minha atenção se desviou para as muitas fotografias que ornavam as paredes da
escadaria. ’’Não sabia que também fotografava...‘’.
Explicou-me que era uma paixão antiga. E que aquilo que gostava de
fotografar era gente! Gostava de retrato, acima de tudo. O que era corroborado
pelas imagens expostas: exclusivamente retratos! Contou-me um pouco da sua vida
e explicou-me que a sua ida para Inglaterra, Londres (1955-1970), onde
fotografou bastante, foi, neste particular, determinante. Foi lá que tinha
optado definitivamente pela escultura. As horas passadas na câmara escura não eram
compatíveis para fazer as duas coisas. Entretanto, tinha-se-nos juntado a
Margarida, sua mulher, discreta, muito simpática e muito bonita. Pensei: ’’É
claro que o João tinha que estar casado com uma mulher bonita!‘’
Este nosso primeiro encontro durou largos minutos. Nesse dia,
optei por uma paisagem alentejana, e... prometi voltar.
E voltei. Várias vezes. E ainda nesse mesmo ano, quando lhe
telefonei, para uma segunda visita, lhe perguntei: Lembra-se de mim? – Claro
que sim! O Borba sem ser tinto!! (risadas) O João tinha um fino sentido de
humor e terminava muitas a vezes as frases com três pequenas risadas que lhe
eram muito caraterísticas.
Fiz ao longo dos anos várias visitas a este lugar fascinante. Nalgumas
delas, encontrei-o a trabalhar com os alunos seus e percebi que ali também
fazia escola. Inexplicavelmente, não tenho nenhum registo fotográfico destas
minhas peregrinações. Não sei porquê, a Leica ficou sempre no carro.
A sua obra como escultor é incontornável, para além do mais
inovadora e até revolucionária. Mas, os seus desenhos, têm um nível absolutamente
superior. Porém, se como reza a sua biografia, não tem sido a pedra o seu
principal chamamento, o João Cutileiro, como fotógrafo, tinha indiscutivelmente
palco internacional ao nível de um Alfred Steiglitz ou Robert Frank. Realizou,
em Portugal, daquilo que conheço, além de outras, duas exposições de fotografia
que considero notáveis e atestam bem o que afirmo.
Uma, em Outubro de 2008, na
P4Photography, "Photographs by João
Cutileiro - Vintage nudes from the 60s and 70s" como lhe chamou o
Alexandre Pomar, curador e autor do prefácio do catálogo. Nesta exposição, as
imagens foram postas à venda, revertendo o produto a favor da ‘’Abraço’’. Eram,
na sua maioria, nus, registados durante o tempo que permaneceu em Londres. O
jornal ‘’Público’’ publicou uma extensa reportagem desta exposição, ilustrada com
reproduções de algumas fotografias expostas, o que valeu, segundo constou na
altura, que a fotografada, ao tempo residente do outro lado do Atlântico tenha
movido um processo judicial ao Luís Trindade responsável pela Galeria. A segunda, a meu ver a mais importante, João
Cutileiro 80 anos 1937-2017 – Registos 1952-2017, realizou-se na
Guarda, em Outubro de 2017. Podemos ver no catálogo, acedendo-lhe pelo link
abaixo, e constatar e enorme talento do João Cutileiro como retratista.
Há dias, fui a Évora. Ao entrar na cidade lembrei-me dele e
apeteceu-me bater-lhe à porta, mas o que me levava por ali não me deixou espaço
para isso. No regresso, quando cheguei a casa, estava no ar a notícia da sua
partida. Ironias do destino!
Tenho, na minha colecção, meia dúzia de peças produzidas pelo
João, com as quais ‘’converso’’ de vez em quando, com imensa saudade dos
momentos fugazes do seu convívio.
https://issuu.com/museudaguarda/docs/_cat__logo_jo__o_cutileiro__online_
Excelente testemunho, este do Francisco Borba! Gostei pela emoção que perpassa, pelo retrato de palavras, pelo que de humano ressalta do fazer arte. Obrigado pela partilha, Francisco!
ResponderEliminarObrigado João ! Vindo de si é um comentário que muito me gratifica e muito me responsabiliza ! Um forte abraço
EliminarGostei tanto deste testemunho...
EliminarUm abraço Malhador
Um texto fascinante. Obrigado, Francisco Borba, pela partilha e pela memória de quem não merece ser esquecido. Um abraço, Alex
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