O Outono em Pequim


Reli, pela terceira ou quarta vez, este clássico de Boris Vian. No final, quase todas as personagens do livro morreram ou desapareceram. Poucos escaparam: Ângelo, o Padre Joãozinho, Cláudio Leão, o eremita, e a companheira negra, a Lavanda; o arqueólogo Atanágoras, os irmãos Brício e Bertílio e a bela Cobre; também os garotos Didi e Olívia. No final, Ângelo abandona a Exopotâmia, apanhando o 975 de regresso ao seu novo destino, que não se sabe qual seja. O projecto do caminho de ferro afundou-se num acidente estúpido: a linha e a composição caíram num buraco imenso que se abriu por cima do local onde Atanágoras fazia as suas escavações arqueológicas. Foi tudo engolido pelas areias do deserto. Mas, entretanto, o Conselho Executivo, a mando do Presidente Ursus de Jampolã, mandou recomeçar as obras, enviando para o local um novo director, Antenor Pernô, dois novos engenheiros, dois agentes de execução e três motoristas de camião.

“O Outono em Pequim” conta, entre muitas outras peripécias, a história de amor mal sucedido entre Ângelo e Rochela. Ângelo amava-a desesperadamente; Rochela, porém, amava Ana, um dos engenheiros destacados para a Exopotâmia para contruir a via férrea. Este amor infausto nunca se realizou, a despeito da morte de Ana, morto numa queda, empurrado por Ângelo, que o fez cair na caverna arqueológica de Atanágoras. A bela Cobre amava Ângelo, mas na cabeça dele só existia aquele amor insano por Rochela.

Tudo neste livro parece irreal e absurdo. As personagens parecem perdidas num universo paralelo, sem sentido nem lógica. Mas, nesse aparente desatino, é-nos dado conhecer, de forma nua e crua, a solidão e o desespero da condição humana. Tudo se passa num deserto, onde nada medra, a não ser uma erva rala. É neste deserto que se está a construir um caminho de ferro que leva a lado nenhum. A comandar a equipa de trabalho está a personagem Amadis Dudu, um homossexual assumido, que chegou à Exopotâmia levado pelo autocarro da carreira 975, depois de nunca ter, numa certa manhã, conseguido chegar ao emprego, a despeito de ter tentado apanhar muitos 975 no caminho para o escritório.

Em “O Outono em Pequim”, escondido em diálogos e narrativas aparentemente absurdos, estão as esperanças e as frustrações da vida de todos nós. Um livro por onde perpassa, como uma vertigem, a nossa viagem solitária por um mundo que nunca chegamos a compreender.

Um dos livros mais extraordinários que já li. E a que volto regularmente.

 

Salvador Peres





Comentários

  1. Intenso e límpido texto de Salvador Peres. Parabéns! Para quem não leu, quer ler e para quem leu, quer reler. Desde logo, o Outono em Pequim, não se passa nem no Outono, nem em Pequim, ma num imaginário deserto na Mexopotâmia. E também este deserto mais uma vez está entre o imaginário e o real, pois ele é, ou pelo menos é muito parecido com o deserto de Sossusviel, na Namíbia, em concreto com o Vale das `Árvores Mortas.

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  2. Quanto à aguarela de Nuno David, só dizer que é fantástica. Muitos parabéns!

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  3. Uma escrita intensa e um jogo de personagens só ao nível de grandes génios. Lis há muito tempo, fiquei também com vontade de reler, depois desta tua abordagem. Quanto à aguarela do Nuno David, mais uma dádiva, embora eu seja suspeito porque sou fã das aguarelas do Nuno desde sempre.

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  4. Na altura que o li em versão Francesa, tinha 20/21 anos e já gostei.
    Boris Vian tem ainda outros títulos não menos interessantes.
    Obrigado pela partilha.
    Saúde ! :)

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