O "Diário" de Sebastião da Gama traduzido em Itália setenta anos depois
No primeiro registo que o leitor pode encontrar no Diário de Sebastião da Gama (1924-1952), começado a ser redigido em 11 de Janeiro de 1949, logo surgem as personagens da vida real que vão protagonizar todas as narrativas do livro: o professor (Sebastião da Gama, de seu nome), o professor metodólogo (Virgílio Couto, 1901-1972) e os 31 rapazes que constituíam uma turma da Escola Veiga Beirão (já desactivada), em Lisboa, todos nascidos entre 1933 e 1935.
A experiência vivida com os alunos nesta
escola surge retratada até Março de 1950, havendo ainda entradas do final desse
ano lectivo relacionadas com as provas finais que o professor teve de prestar e
alguns registos do ano lectivo seguinte, quando Sebastião da Gama leccionava na
Escola Industrial e Comercial de Estremoz (actual Escola Secundária Rainha
Santa Isabel).
O Diário
surgiu por recomendação do próprio professor metodólogo, apresentado como um
exercício de reflexão da prática lectiva. E Sebastião da Gama respeitou a
sugestão e usou-a a rigor: por estas páginas, passa o mais impressionante de um
ano da relação de um professor com uma turma, as reflexões de um docente, a
palavra dos alunos (que aqui têm voz própria, são transcritos e referidos), uma
formação humanista extraordinária, uma cultura vastíssima, um conhecimento da
literatura alargado, a discussão de práticas e a adopção de modelos, uma
sensibilidade espantosa para a causa educativa, muitas reflexões pessoais.
O Diário
de Sebastião da Gama é um poema pedagógico e um documento literário que mantém,
volvidas sete décadas, toda a frescura da juventude de um professor e dos seus
alunos, toda a crença na formação humana, todo o respeito pelo outro, ambos
comungando numa vida de sinceridade e de aprendizagem do mundo. Ainda hoje se
torna pertinente lê-lo e, provavelmente, a sua leitura ajudará a encontrar
soluções para muitos dos problemas de que a educação enferma no presente.
Muitos excertos desta obra poderia ir buscar
para testemunhar o entendimento que o jovem Sebastião, com 24 anos quando
começou o Diário, tinha do que era
ser professor ou das estratégias que seguiu para superar o quotidiano na sua
relação com os alunos.
Gostaria, no entanto, de trazer para aqui o
testemunho de um dos alunos de Sebastião da Gama. Nicolau
da Claudina teve-o como professor no ano lectivo de 1946/47, na Escola João
Vaz, em Setúbal, período anterior ao que nos é relatado no Diário. Num testemunho dado 60 anos depois, este aluno setubalense dizia
ter a chegada do professor Sebastião da Gama provocado “uma reviravolta na forma de ensinar (aprendendo) e conviver com os
alunos”, ao ponto de recordar: “os 50
minutos da aula eram passados numa voragem, sem tempo, porque estar ali era
viver intensamente um sentimento de alegria envolvida com o desejo de sentir a
diferença do ensinar.” Podemos perguntar que efeitos tinham estas
descobertas nos alunos... e Nicolau era categórico na resposta: “o professor Sebastião da Gama, com o seu
modo de actuação, conseguiu transformar um aluno medíocre num participante
assíduo no quadro de honra, cumprindo o resto do curso sempre com elevadas
médias. Isto, posso afirmar sem receio, devo-o ao meu querido professor
Sebastião da Gama.” Não era pouco aquilo que este aluno bebia do convívio
com o professor na escola e, vencendo o tempo, Nicolau da Claudina reconhecia a
gratidão ao professor “pela forma serena
e inteligente como [lhe] ensinou o caminho do futuro”.
Este papel desempenhado pela memória comprova
que as linhas defendidas por Sebastião da Gama no seu Diário, enquanto professor, sempre a aprender e a testemunhar, não
eram sentidas por ele apenas para se justificar, mas faziam parte de uma
maneira de estar e de entender a vida e a profissão. As marcas que se perpetuaram
nestes alunos são as da admiração e da gratidão, é verdade, mas também as da
amizade, valores que o professor cultivou.
O Diário
de Sebastião da Gama não é de leitura obrigatória. Mas devia sê-lo. Pelo menos
para todos os que se dedicam à nobre causa da educação - professores, claro,
mas também os responsáveis pela política da educação. E, já agora, os pais.
Fosse esta obra assinada por um autor daquelas culturas que tanto gostamos de
imitar - do norte da Europa ou da América, por exemplo - e não faltariam
recomendações de leitura e sublinhados na história!... E não faltaria até a tal
obrigatoriedade... Em final de Janeiro, surgiu a tradução integral do Diário em italiano pela mão de Maria
Antonietta Rossi (Firenze: Lorenzo de’Medici Press) - estudiosa que já em 2010
traduzira excertos do Diário e os
publicara sob o título de Frammenti di
‘Diário’ - Sebastião da Gama e la lingua portoghese (Viterbo: Edizioni
Sette Città) -, justamente a inaugurar uma colecção dedicada a autores
portugueses. O que levou Rossi a dedicar-se a Sebastião da Gama foi o trajecto
pedagógico e o seu relato, num percurso que aproximou o professor azeitonense
do pedagogo italiano Giuseppe Lombardo-Radice (1879-1938), que pensou a escola
voltada para a iniciativa e a imaginação do aluno, vivida numa relação de
proximidade e de humanismo entre mestre e discípulo. Pelo caminho, obviamente,
uma escola em que o afecto seja uma constante, afinal para que haja uma escola em
que “os alunos sejam felizes”.
João Reis Ribeiro
Um acontecimento editorial que honra a memória do Poeta e abre portas a maior conhecimento e alcance da sua obra. Parabéns ao João Reis Ribeiro e à Associação Cultural Sebastião da Gama pelo excelente trabalho que vêm fazendo. O Synapsis sente-se honrado por contar nas suas fileiras com o grande divulgador da obra de Sebastião da Gama.
ResponderEliminarSebastião da gama era um Génio. Só podia ser. Ainda hoje são poucas as pessoas que aos 20 e poucos anos conseguem deixar uma marca tão duradoura por um longo futuro. Que teria feito Sebastião da Gama se tivesse vivido os anos ditos normais de uma pessoa? Será sempre uma incógnita mas já nos espanta no bom sentido aquilo que fez em tão poucos anos. E agora que os professores parece que voltaram a ganhar um protagonismo que nunca deviam ter perdido, parece que Sebastião da Gama ainda ontem deu aulas e os seus alunos anseiam pela próxima amanhã... muitos parabéns ao João Reis Ribeiro e ao trabalho incrível que tem desenvolvido.
ResponderEliminarGrande foto do António Manuel que nos traz momentos altos do Synapsis, a recordar o 6º aniversário em 2016 no Museu Oceanográfico no lugar mágico chamado Portinho da Arrábida.
ResponderEliminarExcelente texto de João Reis Ribeiro, que tão bem sumariza a importância deste Diário! Excelente notícia esta, da tradução do "Diário" de Sebastião da Gama para italiano, que pode ser mais um importante passo na divulgação além fronteiras deste grande poeta e da sua grande obra. Parabéns João, o grande divulgador de Sebastião da Gama, que assim enriquece o nosso património literário! Parabéns também pela bela e sugestiva fotografia de António Manuel dos Santos!
ResponderEliminarCaros Salvador Peres, Alex Gandum e Isabel Melo, obrigado pelas referências que fazem. Tenho, contudo, de reconhecer que o que tem sido feito em prol da divulgação de Sebastião da Gama tem a colaboração e a vontade de muita gente e parcerias entre diversas instituições. Permitam-me que a dedicação que reconhecem seja atribuída a um vasto grupo. Abraço repartido.
ResponderEliminarCaros Salvador Peres, Alex Gandum e Isabel Melo, obrigado pelas referências que fazem. Tenho, contudo, de reconhecer que o que tem sido feito em prol da divulgação de Sebastião da Gama tem a colaboração e a vontade de muita gente e parcerias entre diversas instituições. Permitam-me que a dedicação que reconhecem seja atribuída a um vasto grupo. Abraço repartido.
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