A propósito de Nomadland - Elisabete Caramelo

 

Muito se escreveu sobre o filme vencedor dos óscares deste ano e, provavelmente, dele ficará apenas a memória do triunfo de uma jovem realizadora chinesa, que veio para a Europa e acabou na América em busca do tão falado sonho de Hollywood.

Enquanto filme, Nomadland pouco acrescenta à história do Cinema e é quase certo que a sua realização não inspirará gerações de cineastas no futuro. No entanto, para mim, o road movie de Chloé Zhao é como que um prenúncio da vida humana na Terra, não só para a working class, mas para todos os que dependem dos seus recursos para sobreviver.

Nós, os seres humanos dos países ditos desenvolvidos, convencemo-nos de que o modelo liberal, de sociedade de consumo (mais ou menos capitalista), chegaria para nos dar tudo o que gostaríamos – casa, carro, trabalho, saúde, reforma, recursos naturais infinitos - enfim, as tão apregoadas “segurança” e “felicidade” da segunda metade do séc. XX e inícios do XXI.  O problema é que, depois da queda do fascismo e do comunismo, assistimos ao progressivo enterro do liberalismo, onde nem precisamos de evocar as imagens de milhares de pessoas em busca de uma nova terra, forçadas a ser nómadas, para que vejamos as desigualdades e a falência do modelo em que acreditámos.

E perante os avanços da tão endeusada inteligência artificial, onde caberão os seres humanos? Onde haverá trabalho para garantir a sobrevivência e a fixação sedentária? Voltaremos a ser nómadas, de novo, em busca da sobrevivência? Despojados do sonho consumista e securitário, voltaremos a ser livres?

No percurso que Fern (a personagem principal interpretada por Frances McDormand) faz na sua van, cruza-se com pessoas que perderam o emprego, a esperança, mas também a segurança e a confiança nas vidas que tinham antes. E há outras que abandonaram tudo por opção, para se sentirem perto da natureza e a viver o despojamento total. E é no meio dos que nada possuem, dos que aceitaram a vulnerabilidade, que Fern encontra pessoas com muito para dar: o que nenhum sistema ou Estado ou desenvolvimento tecnológico poderão alguma vez garantir – o Amor e a empatia pelo Outro. E esta insustentável fragilidade do Ser é, no fundo, o princípio de tudo.

 

Elisabete Caramelo




 

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