Matilde, uma rosa sem espinhos
A 20 de junho de
1921 nascia uma menininha linda a que foi dado o nome de Matilde (Lisboa, 20.06.1921 - 6.07.2010). Uma menina com
uma estrela de ouro na testa, que lhe iluminava todo o ser. Estrela invisível
aos olhos dos outros, mas que sempre brilhou e a transportou por universos
muito diferentes daqueles que são dados a percorrer à maioria dos mortais. A
pequena Matilde Rosa Araújo cresceu numa linda casa rodeada de árvores e flores
lá para os lados de Benfica. Aí brincou, estudou, sonhou, começou a
interrogar-se sobre a vida e o mundo. Uma manhã saiu dessa casa e passou a
frequentar uma outra, a Universidade de Lisboa, onde conheceu muita gente,
amigas e amigos que guardou para a vida e sobre quem fez recair um pouco do seu
brilho. Um deles foi Sebastião da Gama. Eu sei do que falo porque fui uma das suas
amigas, apesar de só a ter conhecido algum tempo depois, na década de 1980.
Foi nos anos da
faculdade que Matilde começou a escrever contos que enviou para concursos, que
ganhou. Que espanto sentiu! As pessoas gostavam tanto do que escrevia que até
premiavam essa escrita. Assim surgiu A Garrana (1943) e Estrada sem
Nome (1947). Entretanto, começou a trabalhar, dando aulas em escolas do
ensino comercial. Começou também a escrever poesia que era legível por crianças
e, após ter publicado O Livro da Tila (1957), passou a ser reconhecida
pelo honroso título de escritora de livros para a infância, âmbito onde se
inclui grande parte da sua produção literária. Mas não só de literatura infantil
e juvenil é feita a obra de Matilde.
Um dos projetos editoriais
mais interessantes, direi até mais sensíveis, em que participou foi o álbum que
fez com o amigo Raul Coelho, editado por este em 1958, intitulado Desenho e
Poesia. Ele desenhou nove quadros, todos a preto e branco, ela escreveu idêntico
número de poemas, tanto uns como outros plenos de “emoção e sinceridade”,
refletindo a inquietação dos autores perante a vida em algumas das suas
vertentes mais doloridas. Os poemas foram “criados” para os desenhos, o que não
é muito vulgar. Objeto de grande beleza estética, o álbum é também de muita
raridade, já que conheceu um circuito de distribuição limitado. São dele os
poemas que decidi partilhar hoje convosco, para comemorarmos os cem anos de
nascimento de Matilde Rosa Araújo. Esta não será a
única vez em que vos falarei desta grande escritora ao longo do presente ano.
Estejam atentos, pois muito mais vai ser dito e escrito sobre o seu caminho de
sinceridade, respeito e abertura ao outro sem falsos pudores, através da
estética da palavra feita literatura.
Vamos então
lê-la. Após a leitura destes textos espero que não restem dúvidas da ligação de
Araújo ao universo neorrealista. Os ecos desta poesia escutamo-los também em
Sidónio Muralha ou Carlos de Oliveira. Hoje, continuamos a precisar de ler
textos assim.
Fátima Ribeiro de Medeiros
POEMA 5. CANSAÇO
Cansaço. Como
uma flor, logo de manhã pisada,
Não te reflorirá
o orvalho das tuas lágrimas
Nem o nevoeiro
lúcido do remorso.
E cansaço. Sabes
que te calcarão de novo, flor na terra sem uma estrela,
Sem poder
escutar o canto de uma ave do paraíso ou de um rouxinol,
Que só eles
entenderão a tua pureza de agora…
E cansaço.
Que mulher te
chamará irmã?
Que homem te
chamará assim?
E cansaço. E o
nevoeiro denso a cair sobre tua almofada de pedra…
Não serás de
novo flor, mas de novo serás pisada.
Para que teimam
em reverdecer teus olhos puros
No charco do
mundo que os reflete e os condena?
POEMA 6. ESTAÇÃO
DE SÃO BENTO
Estação de S.
Bento, a mãe sempre calada
As mãos como
duas bolas de trapo
E os olhos como
duas bolas de trapo
E o pai cheirava
a vinho e rosnava
Que não falava
nunca que não fosse num rosnar
E lá havia de
chegar o comboio
Pouca terra….
Pouca terra….
Pouca terra….
Pouca terra….
Que barulho na
estação
E as bolas de
trapo enrolam-se uma na outra
E as bolas de
trapo enrolam-se uma na outra
E o olhar ficava
mais perdido
E triste
E o pai rosnava
mais
Pouca terra….
Pouca terra….
Passava gente!
Tanta gente!
Tanta mala!
Tanto cabaz!
E o cheiro do
comboio, do fumo, daquele fumo que brilhava no chão
E só a terra
seria pouca, pouca… pouca terra, pouca terra…
E o menino
levantou-se, levantou-se devagarinho
Como se deve
elevar no ar um passarinho com medo
Pouca terra….
Pouca terra….
Que coisa
maravilhosa o comboio!
Grande! Negro!
Comprido!
A deitar fumo
Tão grande! Ali
na Estação de S. Bento
S. Bento
E toda a mãe
parecia dormir de pé agarrada ao guarda-chuva
(A mãe nunca lhe
teria pegado ao colo, não? Fora sempre assim?
E o pai a
rosnar, fora sempre assim?
Sempre?)
E aqui baú
cheinho de coisas velhas
Que só tinham
coisas velhas
E lá viria o
comboio
Pouca terra….
Pouca terra….
Levaria a mãe e
as bolas de trapo
Levaria o pai e
o seu rosnar
E o vinho, o
cheiro a vinho
E o baú dos
trapos velhos
Pouca terra….
Pouca terra….
Ah! E levá-lo-ia
a ele
Ele
A correr, para
muito longe
Apesar de tudo é
tão maravilhoso
Sermos nós,
quando somos crianças
Ele! Ele! Pouca
terra! Pouca terra!
Mas para onde?
S. Bento. É
daqui, é daí, coisa maravilhosa
Que ele vai
partir…
Pouca terra!
Pouca terra!
E é bem verdade
que toda a terra seria pouca…
Matilde Rosa Araújo, Desenho e Poesia,
Extraordinário texto da Fátima Ribeiro de Medeiros salpicado de recordações e emoções sobre alguém que não deve (não pode) ser esquecida. Um post muito bem complementado por poesia que podia ter sido escrita hoje. Parabéns.
ResponderEliminarInteressante a fotografia do Salvador Peres na capa do blog, documentando uma árvore mais que simbólica de um país e de uma região, felizmente agora com manutenção e a salvo, ao contrário do que acontecia há uns anos, em que a sua copa servia de mercado de rua.
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