Nuno David – A busca do visível e o Evangelho das Enguias
Esta semana, o blogue Synapsis apresenta aos seus leitores dois quadros do aguarelista Nuno David, com leitura crítica. Também se sugere a leitura do livro “O Evangelho das Enguias”, do escritor sueco Patrik Svensson.
Nuno David – A busca do visível
Um dia escrevi sobre a pintura de Nuno David e disse que ela prefigurava a busca do visível, ansiando capturar, através da precisão do traço e do formalismo das cores, a objectividade possível para a compreensão fugidia do ser.
Partindo da matéria para o espírito, a pintura do Nuno David liga as formas numa representação artística coerente e harmónica. Esta espécie de espiritualidade naturalista é construída sobre uma narrativa onde prevalece a firmeza do traço, não numa interrogação estática das formas, mas sim num olhar dinâmico sobre o Belo como representação do que de transcendental existe na natureza e no Homem.
Na pintura do Nuno David tudo é substância firme e sustentada. Um
paradigma que remete para o tijolo eterno das formas que permanecem para lá da
erosão do tempo que envelhece o universo.
A actividade do Nuno David não se esgota na arte da pintura. Ele é uma figura de referência no meio artístico e intelectual de Setúbal, o exemplo de que é possível harmonizar a profissão com a actividade artística. Acresce no Nuno David o seu profundo compromisso com o ambiente e um desejo claro de que o homem possa encontrar um caminho que permita estabelecer um pacto de harmonia e reconciliação com a natureza.
Do Nuno David, setubalense por adopção, pode dizer-se que é filho
desse casamento imperecível e apaixonado entre a Serra da Arrábida e o Rio
Sado. A sua obra artística é, toda ela, concebida a partir da luz magnífica que
emerge dessa geografia singular.
Salvador Peres
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O Evangelho das Enguias
O Mar dos Sargaços é um mar interior, sem fronteiras terrestres. É
delimitado por quatro fortes correntes: a oeste, pela Corrente do Golfo; a
norte, pela deriva do Atlântico Norte; a leste, pela Corrente das Canárias e, a
sul, pela Corrente Equatorial do Norte. São cinco milhões de quilómetros
quadrados de mar, que se movimenta num imenso redemoinho, dentro das correntes
que o delimitam.
É aqui, neste mar estranho e misterioso, que a enguia-europeia, a Anguilla
anguilla nasce. É nesse mar que, durante a Primavera, as enguias
sexualmente maduras acasalam, põem e fecundam os seus ovos. É lá, naquele lugar improvável, que surgem,
no seu primeiro estádio, com um corpo parecido com uma folha de salgueiro, as
larvas de enguia. E é de lá que esses seres frágeis, minúsculos e praticamente
transparentes, dão início à sua viagem, levados pela Corrente do Golfo,
percorrendo milhares de quilómetros através do Atlântico em direcção às costas
da Europa, numa jornada que pode durar três anos.
Ao atingir o litoral europeu, ocorre o segundo estádio da sua vida: a
enguia sofre a sua primeira metamorfose, transforma-se em enguia-de-vidro e
migra para os rios e estuários, adaptando-se a um ambiente de água doce. É já
neste novo ambiente que ocorre o terceiro estádio da enguia, uma nova
metamorfose que a transforma em enguia dourada. Agora já não um ser frágil, mas
um bem distinto, forte e resistente.
O grande mistério da enguia começa aqui. Num qualquer momento da sua vida
- uma enguia dourada que consiga sobreviver a doenças e acidentes pode viver
até aos cinquenta anos -, a enguia decide reproduzir-se. A partir desse
momento, a enguia começa a migrar na direcção do Mar dos Sargaços, o lugar onde
nasceu, sofrendo a metamorfose final, o corpo enche-se de ovas e sémen e
transforma-se em enguia prateada, o seu derradeiro estádio de vida.
Uma vez chegada ao Mar dos Sargaços, depois de percorrer até quinhentos
quilómetros por dia, muitas vezes a mil metros de profundidade, a enguia cumpre,
finalmente, o seu desígnio: fertiliza os ovos e morre.
Esta história extraordinária, narrada num livro de rara sensibilidade e
beleza, “O Evangelho das Enguias”, do escritor sueco Patrik Svensson, fala-nos
de um dos maiores mistérios do universo animal. O que leva um ser minúsculo,
nascido num mar interior, a fazer uma viagem oceânica de milhares de
quilómetros até à costa europeia? E o que o faz decidir-se a voltar ao lugar
onde nasceu? E como encontra o caminho de volta?
Estas e outras perguntas, muitas delas ainda sem explicação, a despeito
dos esforços da ciência, ao longo de centenas de anos, para encontrar
respostas, convergem nas grandes interrogações que desafiam a humanidade. Quem
somos? O que nos move? Para onde vamos?
Salvador Peres
Bonita fotografia do Alex Gandum e linda aguarela do Nuno David.
ResponderEliminarQue voltas as enguias dão até chegarem ao nosso prato!
Belas pinturas de Nuno David, com excelente leitura crítica de Salvador Peres e muito boa sugestão literária do mesmo. Ainda a boa fotografia do Alex Gandum. Muitos parabéns a todos!
ResponderEliminarObrigados pelo incentivo, à Diná e também à Isabel.
ResponderEliminarMais um grande post com mais trabalhos fabulosos do Nuno David e uma excelente sugestão literária. Obrigado também pela apreciação da minha foto de Outono.
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