Falar de Amor e do País do Solidó

Esta semana, o Blogue Synapsis sugere duas leituras: um belo texto de Fernando Antunes sobre o amor, "Que eu te pergunte", e o aliciante e imperdível livro de crónicas "No País do Solidó", de José Rentes de Carvalho.




Que eu te pergunte - Fernando Antunes


Que eu te pergunte, disseste-me tu, «está frio?"

e nada se poderá dizer senão referente ao frio

Vergílio Ferreira, in 'Estrela Polar'

 

Yolanda falava do amor de uma forma que nos prendia a todos, naquele fim de tarde. Tinha-se juntado ao nosso grupo, em amena cavaqueira, no café junto à faculdade.

Dizia do amor sem nada dizer. Falava dele de uma forma abstracta que é o modo mais correcto, englobando todas as formas do amor. Se é que há várias e não só uma.

- O que é o amor?

Perguntava, para logo a seguir responder à sua própria pergunta, dizendo que ninguém sabe. Ninguém o conhece. Sente-se e já é bastante. Às vezes até de mais. Não se sabe quando começa, nem tampouco quando termina. Acontece simplesmente. E acrescentou:

- O amor é caprichoso. É coisa de nada quando o pretendemos intenso. Desaparece se o queremos para sempre. Teima em ficar quando desejamos dele nos livrar. O seu começo pode ser arrebatado ou simplesmente ir fermentando lentamente, de forma controlada.

 

- Tal como um bom vinho. Acrescentei eu.

 

 Yolanda tinha vindo dum outro país para aprender português num dos vários cursos em que a faculdade era generosa. 

 

- O que é que o amor tem a ver com o vinho?, perguntou.

 

- Mais do que possas imaginar.


E perdi-me no desenrolar de analogias que ela escutou cativada.

 

- Como vês, o amor também pode estar presente numa garrafa de bom vinho. Ou não. Sem a abrirmos nunca saberemos. Depende da garrafa com que o acaso nos bafejou. Começa ao deitarmos o vinho que coube em sorte, no copo. O aroma que dele se arredonda é já o primeiro sintoma do amor, o qual só termina quando a garrafa se acaba e bebemos o último trago. Diria que é um amor intenso, rápido, irrepetível. 

Recebi dela apenas um sorriso.

Quando o grupo junto à porta do café se desfez, olhou-me, perguntando simplesmente:

 

- A tua casa fica longe?

 Na manhã seguinte, antes de partir, Yolanda deu-me um beijo de despedida dizendo:

 

- Gostei da tua comparação. És um bom tinto velho.

Acrescentando de seguida, sem subtilezas, que a garrafa estava vazia.


Texto de Fernando Antunes

Fotografia de José Alex Gandum


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O País do Solidó - José Rentes de Carvalho



Foi uma das belas surpresas deste Natal. Um familiar ofereceu-me o livro. Já me preparava para o colocar na lista de leituras que aguardam vez na estante, quando, antes de o arrumar, folhei-o. Abri-o numa página ao acaso e comecei a ler. Já não o larguei. A uma crónica, sucede-se outra, qual delas a mais envolvente e interessante. A cada crónica que leio vou pensando “esta é uma crónica que eu gostaria de escrever”.

 

A escrita de Rentes de Carvalho é surpreendente, aliando inteligência e ironia, um grande sentido de humor e um olhar fino e atento aos fenómenos sociais, políticos e culturais que sobressaltam o mundo e afectam as relações entre as pessoas.

 

De acordo com o autor, são “Crónicas de um pais habitado por um estranho povo: os portugueses. São histórias reais de gente inventada e histórias inventadas de gente real, mulheres destemidas e homens combativos, mas também capazes de momentos desprezíveis e de atitudes medrosas. Corajosos e malandros, mentirosos, que fazem pela vida. Gente de carne e osso que aprendeu a desconfiar e a sobreviver num país do solidó, sempre com aquela musiquinha em fundo, atrevida e monótona, divertida e medíocre.”

 


Salvador Peres


Comentários

  1. Um livro imperdível! José Rentes de Carvalho conhece os Portugueses como ninguém - tal como aconteceu com Camilo Castelo Branco, não lhe escapa o melhor ou o pior do que é o português, sendo mesmo capaz de o dissecar até ao mais profundo. E há ainda um misto de Eça no domínio da escrita, na construção das imagens, no pormenor descritivo. Gostei muito deste livro. Bem sugerido, Salvador!

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