Um deserto na Baixa de Setúbal

 


Um Sábado a meio da manhã. Uma nesga de sol espreita a cidade por entre um espesso aglomerado de nuvens. Percorro as principais ruas e praças da baixa de Setúbal: Praça de Bocage, Largo Dr. Francisco Soveral, Rua Dr. Paula Borba, Largo da Misericórdia, Rua Antão Girão, Rua Álvaro Castelões… Contam-se por escassas dezenas as pessoas que circulam por este eixo fundamental da cidade. A maioria dos transeuntes já passou a meia-idade; jovens, quase nenhuns.

O comércio que ainda não fechou há muito que perdeu o brilho e o fulgor. Dentro das lojas, há um vazio e um silêncio tristonhos, saudoso de outros tempos, quando as ruas, engrossadas por uma corrente ininterrupta de gente, forneciam farta clientela ao comércio local.


A Baixa de Setúbal morre lentamente à vista de todos. Sinal dos tempos, é o que defendem muitos, que encontram a justificação para este estado de abandono na emergência de polos de atracção modernos, como os centros comerciais, mais calhados para os hábitos e tipo de vida que marca os dias de hoje. Talvez tenham razão. Setúbal não escapa a essa onda de modernidade que desertifica os centros históricos das cidades e leva para a periferia o músculo que outrora lhes dava vida, fôlego, emoção e movimento.



A Baixa de Setúbal não está a acompanhar o crescimento e desenvolvimento da cidade. Basta presenciar o fluxo de pessoas que acorrem a Setúbal aos fins-de-semana: a maioria corre para a restauração da avenida e da beira-rio ou vai ao Mercado do Livramento. Poucos se interessam em visitar a baixa da cidade. Porque a baixa se deixou cair num marasmo e pouco tem para lhes oferecer, a não ser um comércio pobre e minguado, sem alma, carente de uma oferta atraente e de qualidade.

A forma como a Avenida Luísa Todi está desenhada não ajuda. Com as obras de reconversão, cavou-se um fosso entre o rio e os bairros históricos da cidade. Nada convida a quem chega a Setúbal pela beira-rio a saltar a barreira da Avenida e ir até à zona histórica. Não há suficiente oferta de estacionamento nem corredores transparentes e apelativos que convidem os visitantes a visitar a zona nobre da cidade. Esta opacidade urbana, a par da falta de criatividade e iniciativa do comércio local, ajuda a esconder e desertificar o centro histórico.



Quem fica a perder com tudo isto? Em primeiro lugar, os setubalenses, que vivem com tristeza e frustração o apagamento e a perda crescente de importância da sua cidade; depois, quem nos visita, porque perde a oportunidade de conhecer os bairros históricos da cidade, com a sua malha urbana característica das cidades ribeirinhas e uma notável história e cultura ligadas à pesca, ao comércio do sal e à indústria conserveira. Por fim, os comerciantes, que, uns atrás dos outros, se veem forçados a abandonar os seus negócios, fechar as suas lojas e contribuir para o triste abandono da zona mais emblemática da cidade.

 

Salvador Peres


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Os Cinco Sentidos - O PALADAR


O Paladar... na minha (eno)biblioteca!

Por convívio familiar, conheci há muitos anos, julgo que terá sido ainda nos anos cinquenta do século passado, o Eng.º António Porto Soares Franco (1906-1968). Era diplomado pela Escola Nacional de Agricultura de Monpellier, e foi Director da União Vinícola do Moscatel de Setúbal. Como Administrador e Enólogo da empresa familiar, José Maria da Fonseca foi criador de um dos ícones vínicos da nossa região vitivinícola, o ‘’Periquita’’, feito a partir exclusivamente da casta que lhe deu o nome, e de uma colecção ampelográfica, de incomensurável valor, para salvaguarda de um precioso património genético integrante de centenas de castas de videira, que plantou como esse objectivo na Quinta de Camarate. Era conhecido por ‘’ter um nariz que dava volta ao copo’’, pois era possuidor de uma invulgar memória e capacidade de análise olfativa/gustativa, que lhe permitia, aliado ao seu conhecimento, identificar uma infinidade de vinhos de todo o mundo.


A sua participação no V Congresso Internacional da Vinha e do Vinho, realizado em Lisboa em 1938, ficou marcada pela apresentação de uma comunicação com o título ‘’O Moscatel de Setúbal’’ (1). É um documento de grande importância histórica, pois dá-nos a conhecer as origens de um vinho generoso que é uma referência incontornável dos valores culturais da nossa região, relacionando-o com outros vinhos da mesma classe de renome mundial, como são, por exemplo, o Vinho do Porto e o Vinho Madeira. Começa por uma curiosa citação de Lèon Douarche, que se refere ao Moscatel de Setúbal como um ‘’véritable soleil em bouteilles’’.

Por ele ficamos a saber que, numa memória que data de 1877 sobre a história do Município de Setúbal, pode ler-se: ‘’O excelente Moscatel de Setúbal, que desde tempos remotos goza de celebridade, continua a ser muito apreciado tanto no país como fora dele’’.

Faz uma breve e interessante resenha histórica da região, com notas dos séculos XV a XVII, com referência, nessa época, à existência de ‘’inúmeras vinhas e casas com lagar e adega’’.

Dá-nos a conhecer que no final do século XVIII a exportação de vinhos da região era já importante, tendo duas saídas, o porto de Lisboa e o porto de Setúbal. Refere-se à importância da viticultura, como sendo dentro de todos os ramos da agricultura aquele que maior importância económica tinha, sendo que as vinhas nessa época (1938) estavam ‘’distribuídas por mais de 1500 viticultores, e na sua cultura empregam-se durante o ano uma dezena de milhar de braços´´. Era um tempo em que as vinhas eram quase sempre cultivadas em consociação com árvores de fruto, pois sendo a maioria dos produtores pequenos proprietários, era uma forma de equilibrarem a economia das suas pequenas propriedades.


Conta como ao longo dos anos, até ao tempo em que escreveu este documento, se conseguiram dominar as diversas pragas que foram surgindo, nomeadamente a filoxera, e descreve as diversas operações culturais, incluindo interessantes referências ao sistema de poda utilizado e a forma como se combatiam as doenças, anotando as diversas épocas do ciclo vegetativo para o fazer. Descreve as técnicas de produção do vinho, que considera as mais modernas, comparando-as com as francesas.

Inclui, nesta publicação, uma detalhada informação estatística e analítica (química) sobre o Moscatel de Setúbal, o que do ponto de vista histórico, só por si, enriquece este interessante documento.

São inúmeras as citações elogiosas ao Moscatel de Setúbal, que menciona ao longo do texto, incluindo a do Prof. Rasteiro, numa comunicação que escreveu para a Exposição de Sevilha, em 1929: ‘’a quinta essência dos vinhos licorosos, quando velho, é meduloso sem ser doce, perfume complexo, etéreo e agradabilíssimo, e uma grossura que não impede a lágrima no copo e a deglutição fácil. Quem ainda não bebeu... imagine-o‘’.

Este pequeno livro de 50 páginas inclui ainda um resumo em francês e várias fotografias da região daquela época.

São estas pequenas, mas importantes memórias, que temos obrigação de preservar, estudar e divulgar. É uma forma de enriquecer o nosso conhecimento, e de perceber e respeitar o esforço que os nossos antepassados fizeram para se chegar até aqui. A Região Demarcada do Moscatel de Setúbal foi criada em 1907, e é grato constatar que, pelo esforço e inteligência dos seus intervenientes, é hoje reconhecida e uma referência a nível mundial.

(1) FRANCO, António Porto Soares (1906.1968) - ‘’ O Moscatel de Setúbal’’- Comunicação apresentada no V Congresso Internacional da Vinha e do Vinho,1938 -Edição Editorial Império

Nota: Texto publicado na Edição Especial de Aniversário do Magazine Synapsis

Francisco Borba


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OS SENTIDOS DA VIDA



Tactear-Aproximar

Fotografia de Ana Isa Férias

Nota: Foto publicada no Portefólio da Edição Especial de Aniversário do Magazine Synapsis


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Link: https://www.museudoaljube.pt/evento/a-radio-antes-da-revolucao-uma-fresta-para-a-liberdade/?fbclid=IwZXh0bgNhZW0CMTEAAR2krwXeXrwRGun7mIgOxfXkR802WJkG3lrAfHoufpqpWIHKt_CQ4e1bP5o_aem_AYECQOp3IIW1Yv_stsTYezLAN8gmYzxxR_6nwvha9BcaB8rnMsbSxHQm9xj2UalzFrhdui6HusKYY42sVPbWvg3E


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FICHA TÉCNICA

Coordenação Editorial de Salvador Peres e José Alex Gandum

 Textos de Francisco Borba, José Alex Gandum e Salvador Peres

 Imagens de Ana Isa Férias, Francisco Borba, José Alex Gandum e Salvador Peres

 Edição de Salvador Peres


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